quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A Economia convencional: uma pseudociência (VIIa)

VII. Eles não viram o que estava para acontecer
Antes de acontecer a Grande Recessão americana (iniciada em finais de 2007) o tópico predominante dos economistas neoclássicos era o da explicação da «Grande Moderação», o aparente declínio de súbitas subidas de desemprego e de taxa de inflação desde 1990. Robert Lucas, economista laureado com o prémio Nobel, um dos principais arquitectos da moderna macroeconomia neoclássica, exprimiu mesmo a convicção de que a teoria macroeconómica tinha conseguido um capitalismo paradisíaco:
«A macroeconomia nasceu como área distinta nos anos quarenta, integrando a resposta intelectual à Grande Depressão [iniciada em 1929]. O termo referia-se, então, a um corpo de conhecimentos e especialização que esperávamos ser capaz de evitar a recorrência desse desastre económico. A minha tese, nesta apresentação, é a de que a macroeconomia, no seu sentido original, foi bem sucedida: o problema central de evitar depressões foi, em todos os sentidos práticos, resolvido, e foi de facto resolvido por muitas décadas.» (Lucas, 2003).
Já vimos também, nos nossos anteriores artigos sobre a crise do euro, como eram optimistas e seguras as afirmações de destacados economistas, em postos elevados da administração americana, sobre o bom desempenho da economia de que eram gestores. Depois de ocorrer a Grande Recessão, ficou famosa a frase de Ben Bernanke de que «não viram o que estava para acontecer»; isto, quando vários economistas marxistas e keynesianos já tinham visto o que estava para acontecer.
Apesar disso, eles aí continuam, os economistas convencionais, inteiramente convictos das suas teorias e das suas capacidades de previsão, ao serviço dos governos capitalistas. Como o nosso Vítor Gaspar, que recentemente reconheceu timidamente que não previu bem o impacto da austeridade na diminuição de receita pública.
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Continuando a seguir o livro de Steve Keen vamos agora apresentar alguns aspectos relevantes que explicam porque razão as grandes luminárias da Economia convencional (alguns premiados com o Nobel e outros prémios) não viram o que estava para acontecer quer relativamente à Grande Depressão dos anos trinta, quer relativamente a outras crises como a da Grande Recessão de 2007 a 2009 e a crise do euro. Os textos de Steve Keen relativamente a estas questões são longos e nem sempre de leitura fácil. No que se segue limitar-nos-emos a apresentar os aspectos essenciais e, esperamos nós, de uma forma que não levante dificuldades especiais de entendimento.
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Um dos principais defeitos da economia convencional é acreditar que a macroeconomia é (e deverá ser) uma simples extensão da microeconomia; é a de que não há problemas macroeconómicos que não possam ser tratados como equilíbrios estáveis. Já vimos isso em anteriores artigos: a ideia de que basta somar curvas de firmas individuais para obter a curva do agregado. Sem prestar atenção às interacções e retroacções de firmas e consumidores que invalidam tal abordagem. A ideia «reducionista» de que a macroeconomia é uma simples emanação da microeconomia é patente na forma como os economistas neoclássicos encaram a chamada Lei de Say ([1]).
A lei de Say (Jean-Baptiste Say, 1767-1832) diz o seguinte: «a oferta cria o seu próprio consumo». O capitalismo é, assim, o melhor dos mundos porque havendo oferta haverá também consumo que absorverá toda a oferta disponível. A lei ganhou mais tarde uma roupagem moderna, conhecida por Lei de Walras (Léon Walras, 1834-1910): «a soma de todos os excessos da procura em todos os mercados, deve ser zero». A ideia é a de que se num mercado existe um excedente da procura, noutro mercado existirá um deficit e a soma de excedentes e deficits é zero. É sob esta forma que a lei é adoptada pelos actuais neoclássicos, como p. ex. Steve Kates (1998): «a venda de bens e serviços para o mercado é a fonte de rendimento que irá financiar as aquisições».
Com base nestas «leis» os economistas neoclássicos consideram que nunca poderá haver uma queda na economia causada por um deficit geral na procura. Tiram, assim, conclusões como esta: se há uma procura de trabalho muito baixa num dado mercado face à oferta (logo, desemprego) é porque a procura de trabalho excede a oferta noutros mercados; a solução é os trabalhadores do mercado em que a oferta (de trabalho) supera a procura aceitarem um salário mais baixo.
Steve Keen descreve em pormenor os argumentos do primeiro economista clássico a desmontar a Lei de Say: Karl Marx. Marx começou por criticar a ideia de Say de que «todo o produtor pede dinheiro em troca dos seus produtos só com o objectivo de usar de novo imediatamente esse dinheiro na compra de um novo produto» (Say, 1821). Marx apontou que esta afirmação correspondia a dizer que ninguém numa economia de mercado se propunha acumular riqueza. Ora, um aspecto essencial do capitalismo, conforme esclareceu Marx, é precisamente a necessidade de acumulação de capital por parte da classe capitalista. Marx ridicularizou a convicção de Say de que todos os agentes de uma economia de mercado tinham como único objectivo o consumo, uma ficção que ainda perdura nos actuais economistas (para além dos do tempo de Marx). Ficção que mascara a real dinâmica do capitalismo. Diz Marx (em «Teorias de Mais-Valia», 1861, não traduzido em português; o que se segue é tradução nossa do inglês):
«Nunca se deve esquecer que, na produção capitalista, o que interessa não é o valor de uso imediato, mas sim o valor de troca e, em particular, a expansão da mais-valia. Este é o motivo que comanda a produção capitalista, e é uma concepção só engraçada aquela que ¾ com vista a pôr de lado a contradição da produção capitalista ¾ abstrai da sua base própria e descreve-a como uma produção que tem como objectivo a satisfação directa do consumo dos produtores.»
Steve Keen cita ainda outra passagem de Marx (O Capital, vol. II):
«O capitalista injecta menos valor sob a forma de dinheiro na circulação [de capital] do que aquele que retira dela […] Dado que funciona […] como um capitalista industrial, a sua oferta de valor em bens produzidos é sempre maior que a sua procura de valor. Se a sua oferta e procura neste aspecto se igualassem isso significaria que o seu capital não tinha produzido qualquer mais-valia […] O seu objectivo não é igualar oferta e procura, mas sim fazer a desigualdade entre eles […] tão grande quanto possível.»
A dificuldade para Marx era mostrar que a referida desigualdade podia ser explicada sem recorrer à ideia de que havia capitalistas a «roubar» outros capitalistas no mercado e sem violar o princípio de que os bens eram comprados e vendidos a preços justos. A solução de Marx clarifica a falácia subjacente aos argumentos superficialmente apelativos de Say e Walras. A solução marxiana passa por considerar que num processo de mercado há que ter em conta uma fase produtiva em que o valor da saída (produção) supera o valor da entrada: o valor produzido supera aquilo que o capitalista despende em meios de produção e em salários. Obtém, assim, um lucro que lhe permite acumular riqueza. Marx formalizou a análise em termos de dois circuitos, o «circuito dos bens» e o «circuito do capital». O circuito dos bens pode ser representado por:
B – D – B        (bem – dinheiro – bem)
Quem vai ao mercado com bens troca-os por dinheiro para comprar outros bens. Este circuito obedece genericamente à Lei de Walras, embora Marx tenha apontado situações em que mesmo neste mercado pode haver violações da lei. Mas é no circuito do capital que as coisas funcionam diferentemente. Marx representou-o assim:
D – C – D+      (dinheiro – capital – mais dinheiro)
No circuito do capital o capitalista vai ao mercado com dinheiro para adquirir meios de produção e trabalho; no processo produtivo com lucro vai obter mais valor, logo mais dinheiro, do que inicialmente. O circuito completo, formalizado por Marx, é assim:
D   C(T, MP)… P … C+c   D+d
Dinheiro ® Trabalho e meios de produção … produção … diferentes bens de maior valor que trabalho e meios de produção  ® venda de bens para gerar mais dinheiro.
Este circuito viola por completo a Lei de Say e a Lei de Walras. Steve Keen refere que Keynes também escreveu um trabalho (em 1936) em que desmontava a Lei de Say e de Walras. Contudo, fê-lo de uma forma muito confusa por temer (por razões académicas) ser conotado com Karl Marx. Num rascunho de 1933, que não publicou (apareceu postumamente), Keynes usa basicamente os mesmos argumentos de Marx.
Steve Keen descreve em pormenor a influência do crédito nos circuitos económicos acima apresentados. Refere, nomeadamente, a contribuição de economistas como Schumpeter e Minsky ([2]) para a perspectiva económica que designa de Marx-Schumpeter-Minsky, perspectiva essa que trata a produção, a troca, e o crédito, como um todo da economia capitalista. A economia neoclássica, pelo contrário, apenas analisa a troca e a produção considerando o dinheiro como um simples meio de facilitação das trocas. Além disso, a perspectiva Marx-Schumpeter-Minsky incorpora uma visão dinâmica da economia, logo da possibilidade de ocorrência de instabilidade macroeconómica, enquanto a economia neoclássica permanece amarrada à visão da Lei de Walras que diz basicamente que, apesar de aparência de instabilidade, a macroeconomia é realmente estável.
Para os neoclássicos, amarrados como estão à lei de Walras e à visão estática de sequências de estados de equilíbrio, quaisquer problemas da economia global são apenas sinais de mau funcionamento dos mercados, nomeadamente do mercado de trabalho; se os mercados funcionassem bem nenhum problema aconteceria. Steve Keen apresenta no seu livro um longo trecho de um economista neoclássico de nomeada (Edward Prescott, prémio Nobel da Economia, num artigo de 1999) que diz fundamentalmente isto relativamente à Grande Depressão americana: "aconteceu algo que levou os trabalhadores a decidir trabalhar menos e este aumento de ócio foi reportado pelas agências estatísticas como aumento de desemprego; esse algo foi uma mudança de política governamental, que tornou racional os trabalhadores voluntariamente reduzirem o tempo de trabalho com vista a maximizar a utilidade das suas vidas". Depois destes disparates de um Nobel neoclássico será de admirar que eles não tenham visto o que estava para acontecer?

[1] Steve Keen inclui no livro uma interessante discussão do reducionismo em Ciência. Refere, por exemplo, como a biologia, a química e a física se libertaram há muito das grilhetas do reducionismo: supor, p. ex., que a biologia não é mais do que ter em conta processos químicos, que a química não é mais do que ter em conta interacções de iões obedecendo às leis da física, etc. Já de há muito tempo que estas ciências chegaram à conclusão de que «o todo é maior que a soma das partes». Incidentalmente, esta é também uma ideia presente na dialéctica marxista.
[2] Hyman Misnky (1919-1996) foi um economista americano, keynesiano, de tendência radical. Steve Keen refere que Minsky omitiu a referência a Marx no seu próprio trabalho por o ter publicado no tempo do macartismo dos EUA, logo para evitar perseguições políticas.