sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A Esquerda parlamentar que temos

Já num anterior artigo deste blog afirmámos que a esquerda portuguesa não mostra saber o que quer, ao contrário da direita que sabe muito bem o que quer.
Entendamo-nos:
a) Quando dissemos «esquerda portuguesa» referimo-nos aos partidos da esquerda com representação parlamentar, conforme fica claro no título acima: PCP e BE. São os maiores partidos da esquerda, não só em termos de votação mas também em termos de capacidade de mobilização popular. Para além disso, no caso do PCP, existe uma grande capacidade de mobilização sindical.
b) Quando dizemos que não mostram saber o que querem, limitamo-nos a constatar que, pelos argumentos que avançam e pelas soluções que propõem, PCP e BE não apontam para nada que rompa com a lógica do sistema capitalista; no caso português um capitalismo decadente, dependente, e neo-colonizado pelo núcleo pró-imperialista alemão-francês.
São partidos acomodados ao status quo, logo sem postura revolucionária. Dir-me-ão que não é verdade. Que o PCP e o BE se fartam de denunciar no parlamento as políticas da direita e de propor medidas alternativas de esquerda. Bom, isso é o mínimo exigível a partidos de esquerda, mas largamente insuficiente quanto à orientação actual das lutas populares, quando todos os ingredientes estão reunidos para um despoletamento revolucionário.
A questão hoje não é (só) a proposição parlamentar de medidas de «esquerda». A questão está em que quer PCP quer BE não apontam para a superação do capitalismo, não esclarecem as massas sobre a impossibilidade de resolver os seus problemas dentro do capitalismo, e não conduzem as lutas de massas, nem as lutas dos trabalhadores, com esse objectivo em vista. Não dizem que é necessário nacionalizar a banca; dizem que é necessário reformá-la ou fixar impostos sobre transacções financeiras o que qualquer Hollande também sabe dizer. Não mobilizam os trabalhadores para o controlo e ocupação de instalações fabris quando os patrões estão para as abandonar; quando isso acontece é espontaneamente, pelos próprios trabalhadores. Não dizem que é necessário nacionalizar as grandes empresas; dizem que não se deve privatizar a EDP, quando ela está para ser privatizada, depois que não se deve privatizar a TAP, quando ela está para ser privatizada, etc. Sempre atrás dos acontecimentos, sempre numa posição reformista, sempre no simples papel de críticos parlamentares do regime. Um papel de esquerda facilmente digerido pela direita.
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Já repararam que a palavra «socialismo» deixou há muito de constar dos dicionários do PCP e do BE?
E que dizer do marxismo e do leninismo de que se arrogam depositários o PCP e o BE? A postura reformista e a superficialidade de ambos nas análises políticas que fazem não são abonatórias nesse capítulo. Uma coisa é certa: depois de anos e anos como meros críticos de esquerda do sistema, ambos sofrem de doses elevadas daquilo que Lenine designava por «cretinismo parlamentar».
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Na fase actual o mais longe que vão o BE e PCP é exigir a rejeição do memorando com a troika; mas é uma rejeição que tem simplesmente em vista a obtenção de prazos mais longos de pagamento da dívida, a distinção entre dívida legítima e ilegítima (esta última, presume-se, embora não o digam com clareza, provocada pela especulação bancária) e a capacidade de desenvolvimento do sector produtivo. Mais uma vez, nada que um Seguro ou um Papademos não pudesse subscrever.
Quanto à necessidade de desenvolvimento também Cavaco Silva o diz. Mas como qualquer marxista (e não só) sabe, não basta dizer. Não se trata de um qualquer governo «querer» desenvolvimento. Trata-se da questão fundamental que no sistema capitalista o desenvolvimento económico não está submetido a nenhum imperativo social; apenas ao imperativo do lucro. Logo, o desenvolvimento só terá lugar se a classe capitalista achar que o investimento no sector produtivo irá dar lucro. Ora isso não terá lugar tão cedo dada a descapitalização bancária (imensa massa de capital fictício) e a deslocalização da produção para países de mão-de-obra barata, poucos direitos e baixa capacidade reivindicativa (China, Índia, Malásia, México, etc.). Já nos referimos a tudo isto no nosso anterior artigo «A Crise do Euro».
A taxa de crescimento do PIB dos EUA manteve-se baixa e praticamente estacionária em 2012. A recuperação do crescimento do PIB dos EUA depois da Grande Recessão é a mais longa que a História regista. Na União Europeia (UE), os países nórdicos registaram uma taxa média de crescimento também baixa (da ordem de 2%); os do Sul estão em recessão. Os peritos de Berlim já disseram que a crise se vai manter por mais 30 ou 40 anos. Só o Gaspar (e Passos Coelho) está optimista de que já iremos crescer em 2014. Também a comissão económica da UE fez muitos prognósticos optimistas quanto à Grécia, mas a realidade foi diferente, conforme mostra a figura abaixo.


Os prognósticos do crescimento do PIB da Grécia feitos pela UE, a tracejado. O crescimento (de facto, decrescimento) real, a cheio.

Em suma, já ninguém duvida ¾ nem mesmo muitos dos economistas convencionais! ¾ que a crise do capitalismo está para durar (com ilhas de optimismo nos BRICs). Será que vai «morrer» por si mesmo? Claro que não. A passagem para o sector produtivo de novas conquistas tecnológicas (fala-se, por exemplo, nas nanotecnologias) pode emprestar um impulso à formação de novas empresas, logo a um crescimento do PIB; mas de novo se irá manifestar a lei da queda tendencial da taxa de lucro. A figura abaixo ilustra isso mesmo. Podem surgir períodos de alívio, como a última bossa ascendente na figura abaixo. Serão logo seguidos por períodos de penúria. É a lei inelutável do capitalismo. Bom, no passado, novos e longos períodos ascendentes ocorreram a seguir a guerras mundiais. Tal cenário, hoje, destruiria provavelmente por completo a taxa de lucro e a humanidade como a conhecemos.



Evolução da taxa de lucro dos EUA representada pela curva a vermelho (figura adaptada de Michael Roberts blog: http://thenextrecession.wordpress.com/page/2/). O valor para 2012 é exacto. A partir daí trata-se de estimativas. A traço preto, sobrepusemos uma curva de tendência (especulativa a partir de 2013).
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Grande parte do povo português pensa ainda que a crise actual é conjuntural. Muitos trabalhadores e muitos da chamada «classe média» (trabalhadores de colarinhos brancos e pequena burguesia) ainda julgam que, sim senhor, estamos e iremos passar um mau bocado mas pelo simples facto de estarmos na UE e na Zona Euro (ZE) iremos ultrapassar isso e, quem sabe, no futuro, sermos como a França. Uma ilusão importada pelos emigrantes portugueses em França que valeu bons votos ao PS nas primeiras eleições pós 25 de Abril e foi bem aproveitada por Mário Soares nos anos oitenta para passar à adesão à UE sem dar cavaco às tropas. Era o tempo da «Europa connosco». Trata-se de um ludíbrio monumental. Primeiro, porque como se disse, a crise do capitalismo está para durar. Segundo, porque a UE e a ZE não são uniões de povos livres; são arenas de negócios dos capitalistas europeus e nas horas dos apertos os capitalistas esquecem as belas palavras da «solidariedade europeia» e os mais fortes tratam de descarregar nos mais fracos o ónus dos apertos.
Tudo isto deveria fazer parte das preocupações da esquerda. Esclarecer e alertar para o sem-saída do capitalismo na UE e na ZE, e mobilizar para uma saída revolucionária rumo ao socialismo. Em vez disso, que fazem o BE e o PCP?
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Recentemente os representantes máximos dos dois partidos deram entrevistas à televisão. Ambos confirmaram a postura reformista, defensiva, inadequada à situação presente, que referimos acima.
João Semedo, pelo BE, para além de coisas óbvias que qualquer esquerda minimalista diria, falou em ser necessária uma «ruptura profunda» com a política presente, nomeadamente «rasgar» o presente memorando com a troika. Mas deixou ficar a ideia de que um novo memorando que não nos submetesse aos ditames de quem empresta, estaria bem. No fundo é a velha ideia de que deveremos ser nós a indicar prazos e modalidades de pagamento. (Semedo usou até a imagem de que num empréstimo para uma casa, «nós», os contraentes de empréstimo, é que devemos dizer como mobilar a casa, etc.) Num hipotético governo de esquerda o «nós» corresponderia, portanto, à esquerda a decidir como indemnizar os pobres banqueiros que andaram metidos em especulações. A esquerda no papel de apoiantes e indemnizadores de capitalistas especuladores. Tudo isto para que o capitalismo se mantenha intocável. Que tal?
Referiu também que «os portugueses não foram ouvidos sobre a integração na União Europeia», mas quando interrogado sobre a perspectiva de saída do euro disse que isso seria um «desastre, catástrofe, de consequências imprevisíveis» como qualquer «economista encartado» diria. Bom, pelos vistos Semedo só conhece a opinião dos «economistas encartados», isto é, dos economistas convencionais, neoclássicos; os que beberam das mesmas águas onde Gaspar bebeu. Se tivesse perguntado a economistas marxistas ou mesmo keynesianos radicais iria obter respostas diferentes. Assim, Semedo continua preso à lógica capitalista. Afirmou também que seria contraditório lutar contra a troika no âmbito do euro e ao mesmo tempo querer sair do euro. Portanto, para evitar contradições, com as quais a troika se pode sentir ofendida, o melhor é mantermo-nos no euro; Semedo dixit. E, para além do mais, Semedo afirmou que os do BE são «europeístas de esquerda». Isto ou quer dizer que se sentem bem na UE tal como está ou, de facto, não quer dizer nada, porque não serão o BE e partidos irmãos da UE que irão transformar «por dentro» a UE «roubando» o poder aos capitalistas. (Já os estou a ver a tremer com a esquerdização promovida pelo BE e irmãos.) Enfim, o cúmulo do pensamento reformista. Já não limitado a um único país mas extravasando a toda a Europa.
Quando a entrevistadora referiu que nestes 40 anos de democracia uma maioria de esquerda com o PS nunca funcionou como tal (como maioria que envolvesse o PS e outros à esquerda do PS), disse Semedo: «a questão é saber se um governo de esquerda se pode constituir com uma posição tímida em relação ao memorando». Logo, se o PS tiver uma posição não tímida (ou talvez menos tímida), tudo fica bem. É logo promovido a partido autorizado a entrar num governo de esquerda. No fundo, Semedo não descarta a aliança com o PS e, na entrevista, aceitou implicitamente que o PS é de esquerda. Para nós esta é a aldrabice fundamental que levou o país e os trabalhadores portugueses à linda situação actual (ver nossos artigos anteriores).

Quanto à entrevista com Jerónimo de Sousa, pelo PCP, a impressão que se colhe é a de que é lamentável. É inclusive penoso estar a ouvi-lo constantemente numa atitude defensiva, como aluno frente ao quadro com medo de ser apanhado com a cábula na mão, fugindo sistematicamente a respostas concretas e esclarecedoras, embrulhando o cerne das questões em circunlóquios (do tipo «sim… mas… por outro lado… contudo… é preciso ver… se o povo… então nós achamos que…») e em chavões.
Uma pérola desta postura foi a resposta sobre se deveríamos ou não sair da UE e do euro. Disse Jerónimo: «Precisamos de um desenvolvimento soberano. No quadro da União Europeia, se esta for impedimento a esse desenvolvimento soberano, então entendemos que o povo se deve pronunciar sobre isso. Sim ou não temos direito a esse desenvolvimento soberano? Se a União Europeia disser que não podemos, então […] o povo português não pode estar condicionado [a pertencer à UE]». O chavão aqui é «desenvolvimento soberano». É óbvio que a UE não vai dizer que não podemos ter «desenvolvimento soberano». Para a UE qualquer desenvolvimento capitalista, inclusive neo-colonial, é soberano. Para quê, então, matraquear com o chavão digno de um discurso burguês de «desenvolvimento soberano»? Mas o mais espantoso é que o PCP, que se arroga de ser marxista-leninista, acha que primeiro se deve perguntar ao povo e depois logo se vê. Por conseguinte, se o povo em hipotético referendo se pronunciar pelo «não» à saída da UE, o PCP, uma vez conhecidos os resultados do referendo, cala-se sobre a questão. A entrevistadora bem repetiu a pergunta sobre «qual a posição do PCP». Jerónimo não se moveu um milímetro. Repetiu a citação acima mais ou menos pelas mesmas palavras. Segundo o que disse Jerónimo, o PCP não tem posição própria, fundamentada, sobre a saída da UE (embora tenha acertadamente dito na entrevista que a UE «não é reformável»). Onde está então o papel de esclarecimento do povo, dos trabalhadores? Onde está o resultado do estudo científico das questões? Onde está o papel de vanguarda na condução dos trabalhadores? Não, isto decididamente não tem nada de marxismo nem tem nada de leninismo.
Quanto à posição face ao PS, disse Jerónimo de Sousa «não peçam ao PCP para convergir com o PS para aquilo que é mau para o povo». Não peçam ao PCP? Quem está a pedir ou vai pedir tal coisa ao PCP? No fundo trata-se de uma resposta ambígua porque cabe nela a ideia de que se o PS não quiser o que é «mau» (outra ambiguidade) para o povo, então recebe um certificado atestando que é de «esquerda» e o governo de esquerda torna-se viável. Aliás, Jerónimo de Sousa na entrevista não desfez a ilusão de um «governo de esquerda» com o PS, com um primeiro-ministro do PS. Pensamos que tal cenário a acontecer, para além de ser de curta duração, não resolveria nada de essencial quanto às mais prementes necessidades dos trabalhadores e do povo português: nacionalização da banca colocando-a ao serviço do povo, em particular ao serviço do desenvolvimento do sector produtivo; acabar gradualmente com o desemprego; melhorar as condições de vida dos trabalhadores, acabando com as maiores desigualdades sociais; acabar com as situações de miséria e de vida degradante. Isso só será possível numa via socialista, como tinha sido prometido no 25 de Abril de 1974 (na altura até o PSD, então PPD, dizia que sim e não descartava o marxismo! Pasme-se!).