sábado, 16 de fevereiro de 2013

A Primavera Árabe. Parte III (Síria)

III – Da Independência até à Primavera Árabe
(Ver Preâmbulo da Parte III no artigo «A Primavera Árabe. Parte III (Preâmbulo, Tunísia)

Síria
Para compreender a evolução política e social da Síria, depois da independência, é necessário compreender o papel do partido Ba'ath. O Ba'ath foi criado em meados dos anos quarenta por dois amigos sírios, Michel Aflaq (cristão ortodoxo) e Salah al-Din Bitar (muçulmano sunita). Os dois estudaram na Sorbonne em Paris e foram muito influenciados pelas doutrinas positivistas de Auguste Comte ([1]). O desconhecimento do marxismo parece ter sido total. Os slogans do Ba'ath eram (são) «unidade, liberdade, socialismo». Quanto à «unidade» é a velha ideia pan-árabe que está presente, com a união de todos os árabes, independentemente das classes, em torno da grande nação árabe. A ideia, portanto, de que a nação (e o nacionalismo) estão acima dos interesses de classe. Quanto à «liberdade», é a defesa de soberania, livre de interferências estrangeiras. Quanto ao «socialismo», trata-se, conforme os ba'athistas esclarecem, da defesa de um «socialismo árabe», diferente do socialismo europeu e marxista. De facto, o slogan «socialismo» só foi adoptado pelo Ba'ath no princípio dos anos 50, por influência de um médico, Wahib al-Ghanim ([2]), que advogava várias medidas que os marxistas também advogam. Inicialmente o Ba'ath era contra as ideias socialistas. Depois de adoptar a ideia do socialismo e de se amalgamar com o Partido Socialista Árabe (PSA) de al-Hawrani, o Ba'ath veio a dar ao «socialismo» uma interpretação muito limitada, entendendo-o apenas como uma mais justa repartição da propriedade fundiária e a adopção de medidas de diminuição da pobreza. O papel interventivo dos trabalhadores não consta deste «socialismo árabe», traduzindo, de facto, o peso reduzidíssimo da classe operária aquando da independência da Síria (e noutros países árabes influenciados pelo Ba'ath, como o Iraque); peso reduzido da classe operária que se manteve ainda durante muito tempo para além da independência. De forma consonante com o positivismo e a ideia de «unidade» o «socialismo árabe» sempre advogou a colaboração de classes e sempre teve uma atitude persecutória dos partidos marxistas. No fundo, o ba'athismo, tal como o nasserismo e o kadafismo, foi mais uma das muitas traduções políticas das posições ideológicas centristas, pequeno-burguesas, que influenciou a grande burguesia e os trabalhadores (principalmente os trabalhadores rurais), atraentes para os quadros médios do oficialato e, como tal, inspiradoras do «bonapartismo» dos regimes que surgiram na Síria, no Egipto e na Líbia ([3]).
O Ba'ath não se limitou a exercer a sua influência na Síria. Criou ramos e agências no Iraque, Líbano, Líbia, Jordânia e Iémen.
Os primeiros anos de independência da Síria foram conturbados ([4]). Os presidentes, todos oriundos dos militares e representando as mais diversas ideologias, sucederam-se no poder. Alguns, como Shukri al-Quwatli (foi presidente entre 1943 e 1949), apoiavam-se no «Bloco Nacional» uma aliança de partidos nacionalistas que lutavam por um desenvolvimento livre das dependências otomana e francesa ([5]). Quwatli foi deposto por um golpe da CIA em Março de 1949 e substituído por um fantoche da CIA, Husni al-Zaim, que tinha estado na prisão por corrupção. O golpe foi apoiado pelo Partido Social Nacionalista Sírio (PSNS), um partido de extrema direita, de inspiração fascista e nazista, que defendia (defende) uma suposta ancestralidade e superioridade da raça síria e advogava (advoga) uma política expansionista com vista à criação da «Grande Nação Síria», englobando a Palestina, o Líbano, a Jordânia, o Iraque, o Kuwait, o noroeste do Suez e do mar Vermelho, a península do Sinai e a ilha de Chipre ([6]). Zaim foi derrubado ao fim de 4 meses e meio e veio a ser sucedido por políticos e militares de tendência nacionalista (Hashim al-Atassi, Fawzi Selu, Adib al-Shishakli).
Em 1954 al-Shishakli foi deposto e foram realizadas eleições parlamentares em que pela primeira vez o Ba'ath ganhou representação bem como o PSNS e o Partido Comunista Sírio (PCS) ([7]). Entretanto, em 1952, Nasser tinha emergido como o líder carismático do Egipto e do renascimento árabe. O seu prestígio era enorme. Este facto teve três consequências:
1 - A fusão em 1958 da Síria com o Egipto, seguindo a ideia da grande nação pan-árabe, na chamada República Árabe Unida (RAU). Essa fusão foi solicitada pelo Ba'ath a Nasser. Este hesitou muito antes de aceitar a ideia e só a veio a aceitar depois da Síria concordar com a seguinte condição: dissolução de todos os partidos em favor de um único, modelado segundo a União Nacional Egípcia de 1956. Como consequência, o PCS entrou na clandestinidade. A breve trecho, porém, os sírios vieram a reconhecer que a RAU tinha sido para eles um mau negócio: na RAU era o Egipto que nomeava os dirigentes políticos e administrativos, com a antiga elite síria arredada do poder e sofrendo as consequências de um programa de reforma agrária teleguiado pelo Egipto. Em 1959 a Síria era mesmo governada por um colega de Nasser. A 29 de Setembro de 1961 o exército sírio revoltou-se e a Síria saiu da RAU. Era o fim do sonho pequeno-burguês do pan-arabismo.
2 – A criação de um comité militar secreto. Vários oficiais sírios ba'athistas tinham estadiado no Egipto e, à semelhança do movimento dos «oficiais livres», procederam à criação desse comité secreto. Um dos seus elementos era o major Hafez al-Assad de origem alauíta ([8]).
3 - O voltar de atenções do Ba'ath para a URSS, que fornecia o armamento do Egipto, além de ajudar com técnicos e equipamento na construção de infra-estruturas.

O fim da RAU em 1961 levou a cisões na Ba'ath e à saída dos elementos socialistas que reconstruíram o antigo PSA. A debilidade do Ba'ath foi colmatada através da sua militarização. Em vez de métodos electivos assistiu-se à instalação de militares do topo à base do Ba'ath, obedecendo a uma cadeia de comando de controlo autoritário. Em 8 de Março de 1963 o comité militar do Ba'ath com o apoio de oficiais sírios nasseristas apodera-se do poder e declara o «estado de emergência». Durante o período de 1963 a 1966 os militares do Ba'ath evoluem no sentido da concentração do poder: ainda em 1963 afastam os nasseristas e tornam o Ba'ath o único partido oficial; em 1966 a facção de esquerda saneia os fundadores do Ba'ath (Aflaq e al-Bitar que se refugiam no Ba'ath iraquiano) e separa o Ba'ath sírio do iraquiano.
Em 1966, a facção de esquerda pró-marxista do Ba'ath (liderada por Salah Jadid) lança um vasto programa de nacionalizações e de reforma agrária; condena os países árabes reaccionários e prega a guerra contra Israel. As condições materiais e a liderança da classe operária para as transformações socialistas faltavam, porém. A indústria era quase inexistente. Seja como for, as transformações económicas iniciadas em 1966 proporcionam um impressionante aumento do PIB per capita nos anos setenta (um crescimento de 336% durante os anos setenta! [9]; ver também figura abaixo) e uma melhoria notável das condições de vida dos trabalhadores (principalmente dos trabalhadores rurais): saúde e educação grátis, habitação subsidiada. Tudo isto granjeou um largo apoio popular ao Ba'ath.
A preto, a evolução do PIB per capita da Síria ([10]) em dólares americanos correntes. A magenta, o PIB per capita tendo em conta a taxa de inflação do dólar, logo fornecendo uma estimativa mais realista, próxima da do PIB per capita em paridade de poder de compra.

A derrota da Síria na guerra dos seis dias com Israel ameaçou a posição do então ministro da defesa Hafez al-Assad, levantando-se vozes no Ba'ath para o seu afastamento no próximo congresso do Ba'ath. Este, que representava a ala conservadora do Ba'ath ([11]), antecipou-se aos opositores. Em Novembro de 1970 lidera o golpe dito «correctivo» («correcção» da via socialista) que leva à prisão o presidente al-Atassi, trava a «transformação socialista» e restabelece relações com países árabes reaccionários como a Arábia Saudita.
Hafez al-Assad rapidamente assume a construção de um Estado autoritário, onde a filiação no Ba'ath era condição necessária para arranjar empregos e ascender na carreira. Estabelece uma nova Constituição. Instala-se rapidamente um clima de clientelismo, em que a clique militar em torno de Assad controla as empresas nacionalizadas. Em 1972 Assad cria a Frente Nacional Progressista (FNP), organização de fachada que alberga os partidos «legais» dispostos a submeter-se ao Ba'ath, incluindo o Partido Comunista Sírio (PCS) e o fascista PSNS. (O PCS estalinista vem a ter, como veremos, uma evolução simplesmente lamentável: cinde-se em duas facções, uma que vem a aliar-se ao fascista PSNS e outra que vem a tornar-se social-democrata pró-ocidental.) Por esta altura separa-se do Ba'ath Jamal al-Atassi (um socialista pan-árabe, parente do Presidente Nureddin al-Atassi) que forma a União Democrática Socialista Árabe, prontamente ilegalizada pelo regime.
Eis os feitos do regime «socialista» Hafez al-Assad, tão gabado por certa esquerda (incluindo o nosso PCP):
- Hafez mantém o «estado de emergência» declarado em 1963 (ver acima) que perdurará até 19 de Abril de 2011, já em plena insurreição popular. Qualquer oposição ao Ba'ath é proibida. Cinco das agências de segurança criadas por Hafez têm como missão controlar a oposição política. O estado de emergência significa que tribunais especiais julgam os delitos políticos sem quaisquer contemplações por direitos humanos. Os presos são regularmente torturados.
- Em 1976 o exército Sírio intervém na guerra civil do Líbano em apoio dos cristãos maronitas, a ala direita pró-israelita do Líbano. Durante a guerra do Líbano o Ba'ath e o fascista PSNS verificaram ter muitos pontos em comum, tendo lugar uma aproximação entre os dois! Colaboraram na liquidação de todos os movimentos progressistas. O regime temia, em particular, o contágio de esquerda proveniente do Líbano. A Síria só abandonou o Líbano em 1990 e, entretanto, os serviços secretos sírios trataram de liquidar figuras progressistas como Kamal Jumblat.
- Em 1980 Hafez restringiu severamente a actividade do PCS apesar de participar na FNP. O PCS (que sempre teve uma história lamentável) cindiu-se em dois: um, o PCS-(Bakdash), do nome do dirigente, continuou a colaborar com o Ba'ath dentro da FNP numa postura submissiva. Vê-lo-emos mais tarde a aliar-se ao fascista PSNS! O PCS-(unificado) veio a sair da FNP sofreu perseguições e acabou por se tornar um partido social-democrata. Enfim, uma história miserável de fraqueza ideológica e traição aos trabalhadores.
- Hafez al-Assad estimulou as rivalidades inter-étnicas e inter-religiosas («dividir para reinar») sob uma pretensa capa de «secularismo». O objectivo era legitimar o domínio da sua própria etnia (alauítas) juntamente com a dos cristãos, correspondendo conjuntamente a 20% da população, contra a oposição maioritária sunita ([12]). Em 1980 rebentaram revoltas de grupos muçulmanos em Alepo, Homs e Hama. O secular Hafez declarou-se defensor do Islão. Em 1982 a reaccionária Irmandade Muçulmana (IM) rebelou-se em Hama. Hafez aproveitou para os massacrar (entre 10 e 25 mil mortos e feridos). O massacre em Hama e noutras cidades foi de tal ordem que tornou impossível uma reconciliação com o sunitas. Hafez teve de abandonar a postura populista e governar pela força das armas.
- O regime procurou também, ao longo de vários anos, afastar os chefes tribais (sheiks) tradicionais, substituindo-os por chefes aliados a Hafez. Note-se que a organização tribal tem ainda hoje uma grande importância na Síria (constituem 50% da população, [13]), existindo confederações de tribos com milhões de pessoas. A maior parte das tribos abandonou o nomadismo (pastorícia) e estabeleceu-se em áreas suburbanas. Muitas das tribos acabaram por ter uma posição anti-regime: tinham as maiores taxas de desemprego e analfabetismo e nenhum acesso a cuidados de saúde ([14]).
- Hafez sempre se declarou contra o Ba'ath iraquiano e contra o Irão (apesar dos alauítas serem um ramo xiita; o Ba'ath veio a aliar-se só em anos recentes ao Irão). Na guerra da coligação liderada pelos EUA contra o Iraque em 1990 o socialista Hafez juntou-se à coligação (juntamente com outros estados árabes reaccionários) fornecendo apoio logístico e tropas de reserva.
- Hafez foi sempre inimigo da OLP. Durante um encontro com a OLP em 1976 referiu-se à Palestina como uma região da Síria, a Síria do Sul. Disse assim aos representantes palestinianos ([15]): «vocês não representam a Palestina tanto quanto eu. Não esqueçam isto: não existe povo palestiniano, entidade palestiniana, só existe a Síria! Vocês são parte integrante do povo sírio e a Palestina é parte integrante da Síria. Logo, somos nós, autoridades sírias, os verdadeiros representantes do povo palestiniano.»
- Uma vez no poder, o nepotismo instalou-se. Hafez preencheu todos os postos importantes da administração com irmãos, sobrinhos e elementos do mesmo clã alauíta. Os alauítas dominaram o complexo militar e, em particular, os serviços de segurança. Alguns elementos sunitas foram admitidos também na entourage desde que demonstrassem total lealdade a Hafez al-Assad ([2]).
- Todas as indústrias nacionalizadas passaram a ser geridas por uma pequena clique leal a al-Assad que se comporta como uma mafia. Os trabalhadores são proibidos de organizar sindicatos. Todas as organizações comunistas são suprimidas e perseguidas ([16]) apesar de nominalmente o PCS fazer parte da FNP! O PCS veio a tomar tantas posições oportunistas que acabou por perder a confiança dos trabalhadores. Entretanto, a economia que tinha experimentado um crescimento significativo durante os anos setenta, rapidamente estagna com os métodos de Assad e o PIB sofre um decréscimo brutal nos anos oitenta (ver figura acima). Já a partir de 1972 a travagem imposta ao programa da ala de esquerda do Ba'ath se fez sentir no aumento da desigualdade social. Em 1980 o sector privado representava já 73% do PIB ([17]). No que diz respeito à agricultura (um sector ainda hoje importante) revela um estudo ([18]) que a percentagem de rendimento para os trabalhadores era de 7,9% em 1963, 12,8% em 1970 e 5,1% em 1975. Isto é, tinha regredido.
A partir do início dos anos noventa o regime de Assad voltou-se abertamente para uma via capitalista de expansão do sector privado (de que se aproveitou a elite do regime) e abertura às corporações estrangeiras. As desigualdades sociais rapidamente aumentaram.
- O ponto forte da aliança sovieto-síria estabelecida por Hafez al-Assad consistiu no seguinte: o estabelecimento de um contrato com a URSS em 1971 nos termos do qual a URSS dispunha da importante base naval de Tartus (a sul de Latakia, capital do governorado alauíta) no mediterrâneo; a única de que dispunha a URSS no mediterrâneo. Em troca, a URSS forneceu armamento e perdoou ¾ da dívida síria.
*    *    *
Hafez al-Assad faleceu em Junho de 2000 e foi substituído (como na monarquia) pelo filho Bashar. No Verão de 2000 Bashar lançou uma campanha de abertura política, libertando 600 presos políticos e legalizando a IM. Constituíram-se grupos e fóruns de discussão, incluindo um movimento pró-reforma. Foi, porém, uma campanha de curta duração. Passado um ano, Bashar reassumiu o despotismo do pai, suprimindo o movimento pró-reforma e prendendo opositores. Em 2005 surgiu um novo movimento oposicionista que qualificava o regime de «autoritário, totalitário e cliquista»; os dirigentes foram presos e condenados a muitos anos de prisão, acontecendo o mesmo aos defensores dos direitos humanos. Entretanto, no mesmo ano, o fascista PSNS era legalizado e passou a ser o segundo maior partido da Síria ([19]).
Onde Bashar se destacou foi na entrega da economia ao sector privado, embarcando numa via neoliberal que liquidou o sector público e aumentou o saque de bens da Síria pela clique cliente de Bashar, clique extremamente corrupta ([20]), associada ao capital estrangeiro. Os serviços públicos degradam-se. Para dar um exemplo da entrega aos privados, o petróleo e gás foram entregues à Shell (Reino Unido), Total (França), National Petroleum Company (China) e Stoytangaz (Rússia). Um dos amigos próximos de Bashar, Rami Makhlouf, tornou-se um dos mais poderosos figurões no controlo da economia, controlando o investimento estrangeiro, a maior companhia de telecomunicações (Syriatel), o sector da construção, bancos, transportes aéreos e comércio de retalho. Bashar conseguiu também aliar a si a burguesia sunita urbana. Abd-al-Halim Khaddam, era um dos poucos sunitas da clique de Bashar; foi vice-presidente de 1984 a 2005. Era um dos duros «socialistas» que defendia com unhas e dentes o «estado de emergência». Pois bem: tornou-se imensamente rico e acabou por fugir para Paris em 2006, passando a «oposicionista» e (pasme-se!) «defensor dos direitos humanos», isto é, defensor dos direitos humanos dele à fortuna pessoal. Oposicionistas deste calibre foram todos para o estrangeiro entenderem-se com os imperialistas.
A contribuição da agricultura em 2011 para o PIB era de 17%; da indústria, 27%; e dos serviços, 56%. (Em Portugal as respectivas contribuições são 2,6%, 23% e 74,5%). Note-se o peso ainda importante do sector agrário.
Como já dissemos, a clique próxima de Bashar tornou-se imensamente rica (a firma Maserati abriu uma agência em Damasco em 2010 para fornecer carros aos ricos), contrastando com a terrível pobreza da população, por esta altura extremamente descontente com o Ba'ath. As relações de Bashar com o imperialismo foram oscilantes; o imperialismo ianque via-o com maus olhos dada a aproximação que, entretanto, tinha operado com o Irão e devido também ao caso do assassinato de Rafic Hariri, magnata e ex-primeiro-ministro libanês. Mas a partir de 2008 Bashar tinha-se entendido perfeitamente com o imperialismo; tinha visitado Sarkozy em Paris e os EUA tinham passado a considerar a Síria como um parceiro nas negociações israelo-palestinianas. Um enviado especial dos EUA tinha visitado Bashar em 2009 e em 2010 estava de novo a funcionar a embaixada americana em Damasco depois de um interregno de cinco anos.
Que se passava, entretanto, com a população trabalhadora? O último estudo sobre a pobreza na Síria foi realizado pela United Nations Development Programme em 2005; revelou que 11,4% da população (2 milhões) era extremamente pobre, não tinha acesso às necessidades básicas (alimentares e outras) e que a desigualdade social tinha aumentado entre 1997 e 2004 ([21]); A Síria tornou-se ainda mais desigual que o Egipto por volta de 2005 ([20]). Estimativas mais recentes apontavam para 13% de extremamente pobres e de entre 33% a 40% abaixo do limiar de pobreza (60% da mediana da distribuição do rendimento). A força de trabalho (cerca de ¼ da população) tinha uma taxa de desemprego da ordem de 10% (20% segundo outras fontes) sendo muito maior entre a juventude ([16, 22]). O Banco Mundial e o FMI expressaram, contudo, a sua satisfação com a ditadura de Bashar al-Assad (!) por esta ter cortado nos subsídios e serviços sociais. Os trabalhadores não dispunham de sindicatos independentes. A única central sindical (GFTU) estava controlada pelo Ba'ath sendo o respectivo presidente um membro do Ba'ath. Na prática os trabalhadores não dispunham de direito a greve nem de quaisquer direitos contratuais. O estatuto de cidadãos de 2.ª categoria das populações tribais não se tinha praticamente modificado.
Já dissemos que na Síria não existiam organizações políticas dos trabalhadores (apenas pequenos grupos na clandestinidade) e que os sindicatos eram controlados pelo governo. Para além disso, uma onda de greves em 1980-81 (espontâneas e sem apoio do PCS) tinha levado à prisão centenas de activistas sindicais dando um rude golpe à organização embrionária dos trabalhadores. A acrescentar a isto, temos que, segundo estimativas de 2004, de 600.000 empresas 500.000 empregavam menos de cinco trabalhadores ([20]). Isto é, os trabalhadores estavam em geral muito isolados em pequenos empresas. Segundo a mesma estimativa 60% das empresas de Damasco e Alepo tinham menos de 14 trabalhadores. Homs e Hama, importantes centros industriais, tinham 80% de empresas com mais de 14 trabalhadores.

Actividades económicas da Síria. Fonte: www.lib.utexas.edu, 1993.

O sector industrial empregava, em 2010, apenas 16% dos trabalhadores, enquanto o sector de serviços (bancos, seguros, serviços) empregava 67%. Os restantes 17% trabalhavam na agricultura. As duas únicas refinarias de petróleo eram em Banias e Homs (Baniyas, Hims, no mapa acima). A indústria têxtil estava concentrada em Alepo, Damasco, Homs e Hama. Para além destas cidades eram centros industriais importantes Latakia e Deir-az-Zor (Dair az-Zawar).
Na véspera da revolução continuava a vigorar no país o estado de emergência (em vigor desde 1963; ver acima) que restringia a liberdade de expressão, organização e associação. A Internet estava restringida; a wikipedia, YouTube, Facebook e Amazon bloqueadas ([23]). Certas etnias, como os Curdos eram considerados apátridas dentro do seu próprio país ([24]).

[1] O positivismo não é mais do que um «casamento» entre o materialismo e o idealismo (entre muitos que têm surgido ao longo da História). Defende que todo o conhecimento é relativo, querendo com isso significar que a «essência» dos fenómenos está fora do conhecimento humano. Um exemplo, em termos simples: para o positivista, se não existisse a humanidade com conhecimentos experimentais e parciais sobre a Terra, a Terra poderia nem sequer existir. Lenine expressa bem o que significa o positivismo na filosofia quando diz que o mesmo é «[…] um agnosticismo que nega a necessidade objectiva da natureza que existe antes e à margem de todo o «conhecimento» e de todo o homem […] uma astúcia lamentável, um desprezável partido centrista na filosofia, que confunde em cada problema isolado a tendência materialista e a idealista». O idealismo do positivismo leva, em política, à rejeição de  que existem interesses materialmente antagónicos entre as classes e a pregar a «solidariedade social», isto é, a colaboração de classes. Muitos dos grandes defensores teóricos do capitalismo são positivistas.
[2] John F Devlin (1991) The Baath Party: Rise and Metamorphosis. The American Historical Review, vol. 96, 5:1396-1407. Também vale a pena ler a wikipedia (versão inglesa) sobre o tema.
[3] Chama-se «bonapartismo» a uma ditadura militar (embora ornamentada por instituições civis parlamentaristas) que estabelece o «equilíbrio» entre os interesses conflituosos da burguesia e dos trabalhadores. O neologismo provém do papel desempenhado por Napoleão Bonaparte no período pós Revolução Francesa. A burguesia patrocina as soluções bonapartistas quando não vê outra saída face a dois perigos: o da reacção feudal-latifundiária e o da revolução das camadas mais desfavorecidas, incluindo a revolução proletária.
[4] A história da Síria entre 1936 e 1949 é complexa devido à rápida sucessão de presidentes e de governos, alguns de efémera duração. A Síria obteve um tratado de independência da França em 1936, o qual foi recusado pelo Parlamento francês. Entre 1940 e 1941 a Síria esteve sob controlo do governo francês de Vichy, colaboracionista com os nazis. De 1941 a 1943 teve vários presidentes que oscilavam entre alinhar-se com os turcos ou com o «Bloco Nacional» que propugnava uma via nacionalista. A wikipédia (versão inglesa) contém informação detalhada e, em grande parte, fidedigna sobre este período, incluindo as menções às interferências da CIA e dos EUA.
[5] Quwatli foi um lutador consequente da causa síria, tendo enfrentado as piores torturas nas prisões turcas e uma condenação à morte pelo governo francês.
[6] O PSNS tem uma estrutura hierárquica ao modo dos partidos fascistas, encimada por um chefe poderoso (princípio do führer). O emblema do PSNS tem semelhanças com a suástica. O hino é uma adaptação do Deutschland über alles. Vários historiadores concordam em caracterizar o PSNS como partido fascista.
[7] Uma boa descrição deste período encontra-se em: Mediawerkgroep Syrië. (Onafhankelijk Media en Ondersoekswergroep) : http://mediawerkgroepsyrie.files.wordpress.com/2012/04/de-bath-partij-1.pdf
[8] Os alauítas tinham-se distinguido como guerreiros esforçados ainda durante o protectorado francês. Seguidores de um ramo específico da religião xiita, tinham um forte sentimento autonomista. Tal como os drusos, formavam dentro da Síria como que uma espécie de elite militar. Os alauítas sempre enfrentaram a oposição religiosa de outras correntes muçulmanas (em particular dos sunitas) pois eram vistos como heréticos (para dar uma analogia, tal como os judeus vêem os cristãos e vice-versa).
[9] Ver Syria Economics na wikipédia (versão inglesa).

[10] World Macroeconomic Research:  http://kushnirs.org/macroeconomics/

[11] O pai de Hafez, Ali Sulayman, colaborou com a administração francesa tendo obtido um posto oficial. Em 1936 foi um de 36 notáveis alauítas a assinar uma carta dirigida ao primeiro-ministro francês dizendo que «O povo alauíta rejeitou a ligação à Síria e deseja permanecer sob protecção francesa». Por esta demonstração de coragem (?) foi denominado al-Assad («o leão») pela população da sua tribo.
[12] Aron Lund. 2012. Divided They Stand. Foundation for European Progressive Studies. The Olof Palme International Center.
[13] Letter from a Syrian Socialist. IMT, 25 de Março de 2011.
[14] Haian Dukhan Tribes and tribalism in the Syrian revolution. Open Democracy, Free Thinking of the World. 19 December 2012. http://www.opendemocracy.net/haian-dukhan/tribes-and-tribalism-in-syrian-revolution
[15] http://www.danielpipes.org/174/palestine-for-the-syrians
[16] Farshad Azadian, Basel Sulaiman (2012) In Defence of the Syrian Revolution: The Marxist position on the revolution ans Assad's so-called "anti-imperialism". IMT.
[17] Mousa Laqdani. Syria: Open ended general strike gains ground – a major clash is being prepared. IMT, 14/12/2011
[18] Hanna Batatu (1999) Syria's Peasantry, the Descendants of its Lesser Rural Nobles, and Their Politics. Princeton University Press.
[19] wikipedia (versão inglesa). Citado noutras fontes.
[20] Jonathan Maunder (2012) The Syrian Crucible, International Socialism, 135. A Transparência Internacional colocava a Síria em 69.ª posição em 2003 e em 93.ª posição em 2006 (escala de a 179; quanto mais alto na escala mais corrupto).
[21] A desigualdade social, medida pelo índice de Gini (valor no intervalo de 0 a 1 e tanto mais alto quanto maior a desigualdade), tina subido de 0,33 em 1997 para 0,37 em 2004.
[22] As estatísticas da Síria são escassas e tendenciosas (pró-regime).
[23] Karin Leukenfeld. Syria: A Historical Perspective on the Current Crisis. Maio de 2011. O estatuto discriminatório dos curdos na Síria é também referido noutras fontes.
[24] Várias fontes referem este problema. Aliás, não são só os curdos que levantam um problema nacional não resolvido na Síria.