segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O sector financeiro. I: o último e decadente refúgio da «economia de mercado»

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«A verdade nua e crua é que as opulentas sociedades ocidentais encorajam valores, atitudes e estruturas de personalidade conducentes ao crime de colarinho branco. Nas palavras de Ian Taylor*, a economia de mercado promove o crime através da

"exaltação da cultura de competição darwiniana por estatuto [social] e por recursos, e encoraja um nível de consumo que não é capaz de proporcionar a todos por meios legítimos"
Neste ambiente os vigaristas criaram tentadoras e frequentemente engenhosas armadilhas de fazer dinheiro, prometendo recompensas principescas aos crédulos. As vítimas sucumbem às tentações que lhes oferecem, na esperança de obter muito dinheiro, ao qual se julgam com direito, aqui e agora, já.
Vigaristas impiedosos e concertados quebram a lei porque é a maneira mais fácil de obterem dinheiro. Juntamente com o desejo de riqueza coexiste o desejo de provar que conseguem ganhar as lutas competitivas, que têm um lugar proeminente nos nossos sistemas económicos. Os vencedores são admirados pela sua habilidade e energia.»



*[Pensamos que não se trata de uma citação de Ian Taylor, mas sim do sociólogo Currie, E. (1997), do seu livro "Market Society and Social Disorder"]

 

O texto acima (por nós traduzido da versão inglesa) não é de um marxista, mas sim de um defensor do capitalismo. O seu autor é Kari Nars, ex-presidente do Banco Central da Finlândia. O texto consta da primeira página do livro de Kari Nars «Swindling Billions: An Extraordinary History of the Great Money Fraudsters» («Burlas de Biliões: Uma História Extraordinária dos Grandes Burlões Financeiros», [1]; note-se que temos vindo a usar «bilião» neste blog com o significado de mil milhões).
O livro contém muita informação de interesse. Nele o autor revela alguns mecanismos de burla financeira que se tornaram «exemplos» históricos. Nas 250 páginas do livro só há espaço para revelar «alguns» dos mecanismos de burla. O conjunto de todas as variantes de burlas financeiras encheria vários volumes. Principalmente desde que o neoliberalismo, que rege as «opulentas sociedades ocidentais» a partir de meados dos anos setenta, tornou o sector financeiro no último e decadente refúgio da «economia de mercado». Refúgio dos vigaristas oficiais e dos vigaristas do costume (a estes não se refere Kari Nars).

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A «história» de Kari Nars começa nos primórdios do capitalismo com a bolha especulativa de John Blunt em 1711-1721. John Blunt vendia acções da Companhia dos Mares do Sul, em Londres, a preços inflacionados. Pela mesma época o escocês John Law ludibriava em Paris a corte de Luís XV e a burguesia parisiense com um esquema semelhante, envolvendo acções da Companhia do Mississipi. Entretanto, os instrumentos e estratagemas usados pelo capital financeiro para ludibriarem o próximo têm crescido dramaticamente. Actualmente, com as técnicas informáticas e a globalização das comunicações, «nascem» todos os meses novos esquemas de burla financeira. Além disso, como já assinalámos várias vezes neste blog (ver, p. ex., [2]) nas «opulentas sociedades ocidentais» (opulentas apenas para uma pequena camada da população, bem entendido) o sector produtivo do capitalismo (designadamente, agricultura, minas e indústrias transformadoras) enfrenta baixas taxas de lucro o que empurra todos os dias os grandes capitalistas a procurarem a obtenção de grandes lucros em sectores de serviços, principalmente no sector de serviços financeiros. Nas sociedades «ocidentais» (EUA, Canadá, UE, Japão) o sector financeiro é, actualmente, um sector muito importante e em crescimento da economia (juntamente com o sector de serviços) enquanto o sector produtivo está em declínio. Por exemplo, nos EUA entre 1948 e 2009, o sector financeiro (agregando, para além das actividades financeiras propriamente ditas, o imobiliário e serviços a empresas) mais que duplicou a sua contribuição para o PIB: de 10% para 22,6%. Por comparação, o sector produtivo (agregando agricultura, minas, indústrias e transportes) decresceu na sua contribuição para o PIB de 58,6% para 23,3% ([3]; ver também [4]).
Se nos restringirmos às actividades financeiras propriamente ditas (bancos, empresas de investimento, seguros) a contribuição para o PIB nos EUA era em 2011 de 8,6% (ver figura abaixo). No Canadá era de 6,5% em 2012. No Japão era de cerca de 5% em 2010, mas o partido no governo propunha-se aumentar a importância do sector financeiro para valores acima de 10% ([5]).


Evolução da contribuição percentual do sector financeiro para o PIB dos EUA ([4]). Source: Bureau of Economic Analysis.

Em quase todos os países da UE (as excepções são a Alemanha e a França que continuam a apostar forte no sector produtivo, embora também aqui se observe a tendência de declínio) constata-se o mesmo fenómeno. Por exemplo, na Irlanda, o sector financeiro viu a sua contribuição para o PIB aumentar de 7,3% para 11,8% entre 2000 e 2009 ([6]). No mesmo período e em Portugal aumentou de 5,5% para 7,1% (7,8% em 2008). No Reino Unido aumentou espectacularmente de 5,4% para 10,4%. Na Holanda, de 5,9% para 8,2%.

Face a estas «sociedades opulentas» existem as «oficinas do mundo», de que o exemplo mais saliente é a China, onde se produzem as quantidades enormes de mercadorias consumidas pelas «sociedades opulentas». O quadro seguinte mostra a contribuição para o PIB de vários sectores da economia em vários países (dados da wikipedia, Eurostat e fontes autorizadas; os dados dos serviços financeiros para a Índia e Rússia foram obtidos, respectivamente, de [7] e [8]). Note-se a menor percentagem de contribuição para o PIB dos serviços em geral e serviços financeiros dos BRICS face a países da OCDE, e a maior percentagem da indústria dos BRICS. Analisar também os casos da França e da Alemanha.

Contribuição (em %) para o PIB de quatro sectores da economia. Valores para 2011 excepto quando indicado outro ano em rodapé.
Sector
Alguns Países da OCDE
BRICS

EUA
UK
Suíça
Port.
França
Alem.
Brasil
Rússia
Índia
China
África do Sul
Agricultura
1,2
0,7
1,3
2,6
1,9
0,8
5,5
4,4
17,2
10,1
2,5
Indústria
19,2
21,1
27,7
22,6
18,3
28,6
27,5
37,6
26,4
45,3
31,6
Serviços (a)
79,6
78,2
71,0
74,8
79,6
70,6
67,0
58,0
56,4
44,6
65,9
S. Financeiros
8,6
9,4
11,1
6,4
4,7
4,2
5,9 (b)
4,5
< 4 (c)
n.d. (d)
< 3,4%(e)
(a) Inclui serviços financeiros (banca, empresas de investimento, seguros).
(b) Relatório do Banco do Brasil de 2010.
(c) O valor de 10% indicado em [7] agrega "real estate" e "business services"; subtraindo os valores que encontrámos para estes subsectores obtém-se um valor inferior a 4%.
(d) Não foi possível encontrar o valor global para a China. Com excepção de regiões autónomas (Hong-Kong e Macau) e regiões especiais (Xangai, etc.) o sector bancário é estatal.
(e) O valor oficial de 3,4% agrega "real estate" e "business services".

Frequentemente, quando um país tem um forte sector de serviços tem também um forte subsector de serviços financeiros (há excepções, como por exemplo as Maldivas, com um forte sector de serviços de Turismo mas fraco sector financeiro). O gráfico da figura abaixo ([9]) mostra a razão percentual do sector de serviços face ao sector industrial (eixo vertical) em termos do PIB per capita (representado em escala logarítmica no eixo horizontal); embora use valores de 2005 permite ter uma ideia do posicionamento de vários países, separando os que em 2005 tinham um sector de serviços proeminente (países acima da recta) dos países com um sector industrial proeminente (abaixo da recta).




Próximo artigo:
O sector financeiro. II: fraudes, escândalos, jogos, vilões oficiais e os vilões do costume.

[1] Kari Nars «Swindling Billions: An Extraordinary History of the Great Money Fraudsters», Marshall Cavendish Business, 2011.


[3] Ver [2]; a fonte dos dados é: Bureau of Economic Analyses, NIPA Table 6.1. Ver também: http://en.wikipedia.org/wiki/Financialization

[4] Mark Thoma, "The Elevated Position of the Financial Sector", Economist's View, October 27, 2011, http://economistsview.typepad.com/economistsview/2011/10/the-elevated-position-of-the-financial-sector.html

[5] Yasuyuki Fuchita «How Much Should Japan Raise the Financial Sector's Share of the Economy?», Nomura Journal of Capital Markets, vol.4, no. 4, 2013

[6] Ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2012/09/a-crise-do-euro-uma-apreciacao-parte-iii.html . Os dados são do Eurostat e dizem respeito ao valor acrescentado bruto (= PIB sem impostos e com subsídios ao consumo).



[9] Ejaz Ghani, "The Service Revolution", Internacional Labor Organization Conference, Genebra 2011.