terça-feira, 17 de novembro de 2015

Reflexões sobre o Momento Político

Como se sabe, a formação de um governo PS, com base num Acordo programático celebrado com o BE e o PCP, é o evento que ocupa as atenções de momento, não só a nível nacional como internacional, nomeadamente da troika.
   
É um evento extremamente importante, cujos detalhes precisos só há poucos dias se tornaram conhecidos. O simples facto de que, pela primeira vez desde a contra-revolução do 25 de Novembro de 1975, o PCP e os grupos políticos subjacentes ao BE (UDP, LCI, etc.) deixaram de ser partidos párias, totalmente afastados do “arco de governação”, para se tornarem partidos intervenientes ao nível da formação do poder, esse simples facto torna o momento político presente muito especial.
   
Momento político que, sem grande surpresa, fez desatar impropérios ao PSD-CDS e até a Cavaco Silva. Nas democracias burguesas só são democráticos e aceitáveis os governos defensores do capital. Por definição. Um governo que, servindo os interesses do povo, possa beliscar os interesses do capital, os interesses, digamos, de 10% da população (os 0,1% de oligarcas e os seus atrelados politicamente conscientes), passa a ser “não aceitável”. (Pode haver e actualmente há muito mais votantes na direita, mas politicamente inconscientes, mistificados pelos media, padres, caciques, etc.) Os impropérios do PSD-CDS e de Cavaco Silva constituem apenas um cair de máscaras, a demonstração clarificadora do que dissemos: para eles, só os governos de direita, servidores do capital são “democráticos”. A estes impropérios não vamos, portanto, prestar atenção.
    
O que mostraram os resultados das eleições legislativas de 2015
   
Para se entender devidamente o momento político, teremos que analisar os resultados das eleições legislativas de 2015, em particular quanto ao castigo popular das políticas de ”austeridade” do PSD/CDS, comparando com os resultados das eleições legislativas de 2011.
   
Muito já foi dito sobre este assunto por vários comentadores, parecendo ser um tema já esgotado. Quanto a nós, porém, muito do que foi dito é simplista e/ou errado, valendo a pena voltar a olhar bem para os resultados.
   
Usaremos os dados do MAI e só nos interessa analisar os números de votos obtidos pelos partidos. Os números de mandatos dependem muito, pelo método de Hondt, de coligações e da “interacção” entre os números de votos [1]. De 2011 para 2015, verificamos:
   
-- O “PAF”/PSD/CDS (o PSD e o CDS concorreram coligados no “PAF-Portugal à Frente” e também isoladamente em alguns círculos) perdeu cerca de 729 mil votos (arredondamos todos os resultados para milhares, suficiente para os propósitos comparativos); uma punição clara do povo português pelo declínio económico, retrocesso democrático e social, miséria, emigração forçada, dependência do estrangeiro; tudo isto, obra do PSD/CDS. Austeridade para os trabalhadores e camadas de baixo rendimento, regabofe para os ricos, para o grande capital.
-- O PS ganhou 180 mil votos;
-- O PCP/PEV ganhou 4 mil votos;
-- O BE ganhou 262 mil votos;
-- O PAN ganhou 17 mil votos;
-- O número de abstenções aumentou de 180 mil;
-- O número de votos brancos e nulos pouco variou (e pouco tem variado).
   
È óbvio de que no cômputo geral as perdas de votos devem compensar os ganhos. Ora, apenas com estes números, as contas não batem certo. Os votos ganhos (180, 4, 262, 17) totalizam 463 mil votos, muito abaixo dos votos perdidos pelo PSD+CDS: 729 mil. Admitindo que as abstenções corresponderam a ganhos de um “partido dos desiludidos do PSD/CDS” (o que não andará longe da verdade) chegamos a um valor de 643 mil votos (463+180), ainda abaixo dos 729 mil votos perdidos pelo PAF/PSD/CDS. Acontece, porém, que os pequenos partidos, sem mandatos (excluindo o PAN), e que por isso mesmo não despertam atenção, tiveram um aumento global de 94 mil votos. Os 643 mil votos já contabilizados, com este acréscimo de 94 mil votos totalizam 737 mil votos, superando os perdidos pelo PSD/CDS. Podemos, agora, acertar as contas com um pequeno ajuste na atribuição de todas as abstenções a desiludidos do PSD/CDS.
   
Colocando, por ordem decrescente, os votos ganhos em 2015, de alguma forma contra o PSD/CDS, temos:
   
BE                                                                   262 mil
PS                                                                    180 mil
“Desiludidos com PSD/CDS”                        172 mil
Pequenos Partidos                                            94 mil
PAN                                                                 17 mil
PCP+PEV                                                           4 mil
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TOTAL                                                           729 mil
   
O aumento da abstenção (3.830.355 em 2009, 4.035.539 em 2011, 4.273.748 em 2015) e a evolução quer do número de pequenos partidos quer dos seus votantes, tem tido uma grande influência nos resultados eleitorais.
    
Se quisermos avaliar melhor a influência do castigo popular da “austeridade” PSD/CDS nestes ganhos de votos, teremos de comparar os resultados de 2015 com os de 2009, quando ainda não se falava em “austeridade” e não se verificava a destruição do país pelo PSD/CDS. Ora, das eleições de 2009 para as de 2015, observa-se que:
   
-- O PSD+CDS perdeu 163 mil votos;
-- O PS perdeu 330 mil votos; isto é, apesar do castigo popular, o PS ainda só recuperou 180 mil dos 510 mil votos que tinha perdido nas eleições de 2011 face às de 2009;
-- O PCP+PEV perdeu mil votos; conseguiu recuperar 4 mil dos 5 mil votos que tinha perdido em 2011 face a 2009;
-- O BE perdeu 7 mil votos; mas recuperou 262 mil dos 269 mil votos que tinha perdido em 2011 face a 2009;
-- Os pequenos partidos (incluindo o PAN) ganharam globalmente 183 mil votos; têm vindo sempre a ganhar votos (176 mil em 2009, 247 mil em 2011, 359 mil em 2015). Nas eleições de 2015 tivemos 6 novos partidos com uma votação total de 155 mil votos!
   
Estas constatações impõem-nos bastante moderação quanto a uma apreciação optimista de uma alegada “viragem à esquerda” das massas populares. Efectivamente:
   
1) O PS só conseguiu recuperar cerca de um terço dos votos perdidos em 2011, um resultado bem modesto, que castiga o alinhamento constante do discurso PS (nomeadamente o discurso da ala de António Seguro) com o discurso do PSD/CDS; inclusive nas medidas económicas conforme já vimos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2015/06/programas-ps-e-psdcds-mesma-coisa-e.html.
   
2) O PCP+PEV quase recuperou da queda de 2011, obtendo um resultado que, face à brutal flagelação dos trabalhadores, nos parece muito modesto, muito aquém do que seria desejável e expectável. O PCP continua a ser vítima do “para quê votar no PCP se o modelo soviético não funcionou?” (interrogação que já ouvimos a quem está contra a direita e lemos em cartas do leitor aos jornais). Paga também o preço de uma má preparação ideológica de muitos dos seus militantes, precisamente aqueles que só hiperbolizaram as virtudes da URSS (e sem dúvida as havia) mas permaneciam sempre cegos a defeitos. Cremos que uma grande massa de potenciais votantes no PCP não sabe o que é que afinal pretende construir o PCP como alternativa ao capitalismo neoliberal e imperialista. A atitude introvertida do PCP (“só se discute dentro do PCP”, “só fazem falta os que cá estão”) também não ajuda; os comunistas vão ao povo e mostram-se abertos ao diálogo e cooperação [2]; não fazem só colóqios entre si. Acrescente-se a tudo isto a actual postura reformista do PCP [3], reflectida em propostas mal explicadas, e slogans que mais parecem de marketing capitalista, como o enfezado e infeliz “Temos soluções”. Pois… Quem as não tem?
   
3) O BE recuperou em grande parte da queda de 2011, aproveitando uma espécie de “efeito Syriza” de jovens e estudantes da pequena burguesia urbana radical;
   
4) Os grandes ganhadores – no sentido apenas de aumento do seu número -- foram os abstencionistas por desilusão política (para além dos apáticos e resignados) e os pequenos partidos (incluindo o PAN). Nos aumentos de votantes destes últimos reflecte-se em alta dose uma grande confusão e desorientação política de massas importantes da população, em busca de novas e milagrosas receitas.
Estamos ainda longe de uma viragem à esquerda de vastas massas populares. Sem dúvida, muitos anseiam por medidas que nos aliviem do sufoco em que estamos. Mas a atitude predominante é a da apatia e resignação, filhas da desilusão e incapacidade de encontrar perspectivas. É também a atitude de estar à espera de milagres: à espera de um novo partido com uma mezinha de ecologia + social-democratismo + libertarismo/anarquismo + humanismo + solidariedade + etc. (quanto mais ingredientes melhor), que salve a nação. A propósito, neste caldo de cultura também costumam medrar os germes fascistas…
    
O PS e o porquê do acordo à esquerda
   
Já várias vezes afirmámos que o PS é um partido de Direita e dissemos porquê (ver definição de Direita e Esquerda em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/01/direita-e-esquerda.html ). Nos antagonismos insanáveis entre Capital e Trabalho a liderança pequeno-burguesa do PS sempre tem escolhido a favor do Capital. E não temos a mínima dúvida que, em última instância, continuará a manter essa escolha, seguindo o curso habitual dos seus congéneres noutros países, desde há mais de um século.
    
Não se trata aqui de uma questão conjuntural, de uma questão moral, ou de uma questão de pessoas, como muitos erradamente supõem. Trata-se de uma questão objectiva, de interesses materiais de classe. A pequena burguesia, pela sua própria posição no modo de produção capitalista, está entalada entre os interesses dos grandes capitalistas e os interesses dos trabalhadores assalariados. Por um lado, ela é constantemente calcada e atirada pela borda fora pelo grande capital, que tende para a concentração do capital, a eliminação dos pequenos negócios e a despromoção de quadros técnicos (engenheiros, economistas, investigadores científicos, enfermeiros, médicos, etc.) à condição de simples assalariados, sempre descartáveis se isso for do interesse do grande capital. (Sobre classes sociais, ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2013/05/classes-sociais-parte-i.html e seguintes.) Na confrontação com o grande capital, a resposta da pequena burguesia é variada: parte dela, mercenariza-se ao grande capital em busca da “ascensão social”; outra parte, busca aliados entre os assalariados para se opor ao grande capital, mas sempre com horror a tornar-se assalariada e, por isso, sempre pronta a trair os seus aliados momentâneos; outra parte, ainda, acaba por se tornar assalariada, mas com saudades dos bons velhos tempos em que tinham os seus negócios e tinham ao seu serviço assalariados de quem colhiam a mais-valia produzida. Daí a grande heterogeneidade social e política do PS, as suas teorias ecléticas, as suas hesitações e oscilações.
   
O PS não coloca como objectivo a superação do capitalismo pelo socialismo. Pelo contrário, o “socialismo” do PS é o capitalismo – com o poder de Estado ao serviço do grande capital, da propriedade privada dos grandes meios de produção, e com a venda ao desbarato de bens públicos a corporações capitalistas (as privatizações). Por vezes, algumas migalhas para os assalariados; até aqui vai o seu socialismo. “Migalhas” bem maiores vão para parte da pequena burguesia; em particular, para dirigentes e atrelados ao PS em nome da “ascensão social”. Em suma, por definição, o “socialismo” do PS não é socialismo.
   
Isso não quer dizer que os PSs rejeitem sempre alianças com partidos de esquerda. Já vimos que em confrontos com o grande capital, há sempre uma tendência – ou até uma necessidade premente – da pequena burguesia buscar aliados entre os partidos e associações de assalariados. Essa tendência sobe de tom com o agudizar da luta de classes. Aconteceu, p. ex., em alguns países nas “frentes populares” contra o fascismo. E aconteceu noutras circunstâncias menos dramáticas, como em França, em 1972, quando o PSF, o PCF e o MRG (Movimento dos Radicais de Esquerda, uma espécie do nosso BE) para apearem a Direita do poder assinaram um “Programa Comum” que contribuiu para a eleição de Mitterrand como Presidente e a formação de governos em que participaram uma escassa minoria de elementos do PCF e MRG [4].
   
Como resultado das eleições de 2015, ofereciam-se duas alternativas ao PS:
   
1) O apoio ao “PAF” quer sob a forma de coligação governamental, quer sob a forma de simples “não oposição” à aprovação do governo “PAF”. Se António Seguro fosse o presidente do partido teria sido esta a alternativa seguida; provavelmente, sob a segunda forma. A coligação teria riscos acrescidos, mesmo para a direita do PS. (O PS é de Direita mas isso não quer dizer – ver o que dissemos acima sobre heterogeneidade – que não haja fracções, quer favoráveis a entendimentos com o grande capital – a direita do PS – quer a entendimentos, ainda que conjunturais, com partidos e associações de Esquerda – a esquerda do PS.) A “não oposição”, com a possibilidade de mais tarde lavar a cara por não ter deixado passar algumas maldades miudinhas do “PAF” teria sido a alternativa de eleição da direita do PS.
   
2) A rejeição do governo “PAF”, avançando para um governo PS com alguma forma de apoio dos partidos de Esquerda.
Vários factos pesaram na escolha desta solução: a) o facto de António Costa representar a esquerda do PS; b) o facto de que, como vimos acima, os resultados eleitorais do PS não foram brilhantes, confirmando a tendência de descida do patamar de 45%-40% (década de 1995-2005) ao patamar de perto de 30% em 2011, descida que castigou gravosas políticas e alinhamentos de direita do PS; c) o facto de o PS ter presente o que aconteceu ao seu congénere PASOK da Grécia que, por se ter aliado à direita na submissão à troika, passou de uma votação de 44% em 2009 para os actuais 4,7% (13% e 12% nas eleições de 2012); d) o facto do BE e PCP terem aceite um acordo muito “suave”, sem exigirem lugares no governo.
    
O Acordo PS-BE-PCP
    
Segundo o comunicado do CC do PCP [5], na base do Acordo com o PS esteve a “inteira disponibilidade para a construção de soluções que assegurassem uma resposta capaz de garantir o desenvolvimento económico, devolver rendimentos e direitos, valorizar salários e pensões, promover o emprego e combater injustiças, recuperar o pleno direito à saúde e à educação, garantir uma segurança social sólida elevados […] não iludindo dificuldades nem escondendo divergências, afirmando a nossa independência e identidade, não prescindindo do nosso Programa e Projecto.” As afirmações de dirigentes do BE são do mesmo tom.
   
O Acordo PS-BE-PCP que veio a ser alcançado [6] comporta:
   
i) Aumentos de rendimento do povo: fim dos cortes salariais e das pensões, com a reposição, em Janeiro de 2016, da norma que actualiza as pensões (suspensa em 2010 pelo governo Sócrates); reposição do Abono de Família, do Complemento Solidário para Idosos e do Rendimento Social de Inserção (ao nível do que existia em 2011, antes da troika); descongelamento de carreiras e reposição faseada dos salários da FP até ao final de 2016 e do regime das 35 horas de trabalho semanal (se não implicar aumentos de custos salariais); aumento faseado do salário mínimo até 600 € em 2019; reposição de feriados.
   
ii) Quanto a direitos laborais o Acordo contempla algumas medidas mais teóricas que concretas: os partidos comprometem-se a criar um "grupo de trabalho" para um "Programa Nacional de Combate à Precariedade", mas… que será submetido à Concertação Social; reforço da fiscalização das normas de trabalho e combate [como?] aos falsos recibos verdes e falsos estágios; possibilidade de um "banco de horas" individual como matéria a decidir na contratação colectiva. O fim do bloqueio à contratação colectiva, para já, é só promessa: “serão publicadas as "portaria de extensão" que alargam o âmbito dos contratos colectivos, obrigando as empresas a respeitar as normas negociadas por sindicatos e associações patronais.” Outras medidas são mais concretas: revogação do Código de Trabalho da contratação a prazo e limitação dos contratos a termo. Foi também eliminada a gravosa proposta do PS do "regime conciliatório" para os despedimentos.
   
iii) Algumas medidas contemplam a progressividade do IRS e IMI e algum alívio no IRC para as PMEs. O IVA da restauração desce para os 13%. 
iv) Foram contempladas medidas de anulação de concessões e privatizações nos transportes colectivos, na EGF, garantida a não privatização da água e não efectuar mais nenhuma concessão ou privatização. O PS diz que "não permitirá que o Estado perca a titularidade sobre a maioria do capital social da TAP”. Veremos.
   

v) Um conjunto variado de medidas dizem respeito à sustentabilidade da Segurança Social – foi eliminada a gravosa descida da TSU das empresas, que era desejada pelo PS (ver http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2015/06/programas-ps-e-psdcds-mesma-coisa-e.html) –, à saúde (reduzir taxas moderadoras, acabar com a promiscuidade público-privado no SNS, etc.), ao ensino e investigação, à qualidade ambiental, etc.
   
 Irá o Acordo vingar?
Já analisámos em http://revolucaoedemocracia.blogspot.pt/2014/03/a-ilusao-de-uma-saida-reformista-da.html a ilusão de uma saída reformista da crise do capitalismo. O que então dissemos, aplica-se, com ligeiras modificações, ao presente Acordo.
   
Notemos o seguinte: quase todo o Acordo é sobre benesses ao povo. As benesses implicam despesas. Onde estão as receitas? As receitas implicam um grande aumento do sector produtivo, quer para exportação, quer para o mercado nacional, substituindo importações. Ora, do lado das receitas, o Acordo diz muito pouco e de forma muito vaga. Diz apenas: “incentivos [fiscais] à instalação de empresas e ao aumento de produção nos territórios fronteiriços”, “estímulos fiscais às PME” [as PME, segundo fontes optimistas, contribuiem para 60% do PIB] e “aumentar a produção e a produtividade das fileiras florestais”.
   
Portanto, sobre aquilo que é essencial numa economia – a produção – o Acordo é quase omisso. Por uma forte e incontornável razão: é que no capitalismo não é o governo quem comanda a economia; pelo contrário, é a economia (a classe capitalista) quem comanda o governo. Dado que a classe capitalista – uma minoria da população -- é proprietária dos meios de produção é ela que determina o que, quando e como se produz. Estando o “que, quando e como” dependentes de uma taxa de lucro que a classe capitalista considere satisfatória para os seus interesses pessoais.
   
Por consequência, grande parte das benesses prometidas e das boas intenções do Acordo só serão postas em prática se os capitalistas (essencialmente o grande capital) quiserem:
   
-- Os estímulos (fiscais e outros) às PME só se materializarão se os banqueiros quiserem emprestar, quer às empresas quer ao Estado (que irá receber menos do IRC das PMEs); (os empréstimos às grandes empresas têm outro tratamento porque quase todas elas já estão em conglomerados com os “seus” bancos);
   
-- Os empréstimos ao Estado irão deparar com oposição do grande capital transnacional e da troika. Os grandes capitalistas só emprestarão se obtiverem retornos maiores do que os conseguidos na jogatina da Bolsa e dos derivados;
   
-- Aliás, não são só os estímulos fiscais que estão em causa, mas também doses elevadas de investimento (formação bruta de capital fixo); ora este tem estado a decair em Portugal e em quae todo o mundo (até na China!) e assim irá continuar (já discutimos isto noutros artigos);
   
-- Como o leit-motiv do capitalismo é o lucro, e a taxa de lucro tem vindo a decair, irão observar-se em sede de “concertação social” bloqueios e sabotagens ao combate contra a precariedade de emprego, contra a contratação colectiva, contra a eliminação dos “bancos de horas”, contra os “estágios” não pagos, contra aumentos salariais, etc.
   
-- Acresce que com as ligações que o Capital tem com os “homens certos”, nomeadamente no aparelho de Justiça (e sobre este o Acordo não pia), a progressividade do IRC tem mil maneiras de ser contornada (subfacturação, contabilização engenhosa, imputação de lucros a dependências estrangeiras, etc., etc.), o mesmo podendo acontecer à TSU, etc.
   
Tudo isto só pode ser combatido por um governo que comande a economia. E isso só pode conseguir-se embarcando numa via rumo ao socialismo.
   
As propostas do PCP para as legislativas de 2015 incluíam muitas medidas essenciais para tal: “a renegociação da dívida nos prazos, juros e montantes”, “a recuperação de instrumentos de soberania monetária, cambial, orçamental e fiscal”, “a eliminação de condicionamentos estratégicos pelo controlo público de sectores como a banca e a energia” (o que só se consegue com nacionalizações controladas pelos trablhdores), “romper com a conivência e subserviência face à União Europeia e à NATO”, “benefícios fiscais para o cooperativismo”, “reforma agrária nos campos do Sul, liquidando a propriedade [privada, pensamos nós ser este o sentido do PCP] de dimensão latifundiária, que condicione por lei o acesso à terra pelo capital estrangeiro [etc.]”, “uma renovada participação do Estado na esfera produtiva, em sectores estratégicos”, “maior tributação dos rendimentos e património, mobiliário e imobiliário, do capital”, “criação de taxas de 60% e de 75% para rendimentos colectáveis superiores a 152 mil e a 500 mil euros anuais”, “taxa de 50% ou 90% respectivamente em todas as transferências financeiras ou rendimentos dirigidos a paraísos fiscais”, “taxa de 0,5% sobre todas as transacções financeiras”, “fim dos benefícios fiscais à Zona Franca da Madeira”.
   
O governo do PS com o Acordo irá, sem dúvida, trazer uma descompressão temporária das misérias e penúrias sociais, frutos da “austeridade” (agora combinada com o quantitative easing do BCE, que está essencialmente a beneficiar os mais ricos e a contribuir para aumentar a desigualdade social). Imporá, também, um importante travão à destruição do país, que tornaria mais difícil e penosa uma futura via rumo ao socialismo. Os trabalhadores e as camadas mais pobres não compreenderiam, aliás, uma recusa do BE e do PCP a um acordo com o PS, impedindo uma melhoria das condições de vida. Foi, por isso, acertada a decisão de convergência do BE e PCP num acordo com o PS.
   
Pensamos, porém, que – apesar da sinceridade e empenho que nos parecem ter António Costa e alguns dos que o acompanham – o Acordo irá ter vida curta pelas seguintes razões:
   
-- Será combatido pelo grande capital transnacional;
-- Será combatido com as maiores pressões e ameaças pela troika (o défice orçamental e a dívida pública continuarão a aumentar)
-- Será combatido pelas agências de rating, aumentando os juros a pagar por obrigações do Tesouro;
-- Será combatido pela própria ala direita do PS, fortemente pró-capitalista e pró-imperialista (Mário Soares [7], Francisco Assis, António Seguro, António Barreto [8], Sérgio Sousa Pinto [9], António Galamba [10], Vera Jardim, etc.).
   
A propósito, na França, o Programa Comum do PSF, PCF e MRG de 1972 era bastante progressista. Incluía nacionalizações e inclusive a dissolução da NATO! Começou a ser implementado em 1981 e só durou dois anos. O PSF ganhou com isso e deu início à sua teoria e prática de “economia social de mercado”! O PCF, acusado pelo PSF do malogro dos governos reformistas do PSF, perdeu. Virou-se para o eurocomunismo, isto é, para o reformismo!
   
Só esperamos que a experiência didáctica do “governo de esquerda” PS em Portugal – se o governo vier a ser aprovado por Cavaco Silva… -- seja bem aproveitada pelo PCP, BE e pela Inter no esclarecimento intenso e lúcido das massas populares, chamando os bois pelos nomes, e contribuindo, assim, para uma definitiva viragem à esquerda.
   
Notas
   
[1] Pelo método de Hondt, seguido em Portugal, pode acontecer que um dado partido, apesar de ter aumentado a sua expressão política em número de votos, obtenha menos mandatos do que nas eleições anteriores. E, inversamente, um partido que obteve um menor número de votos, pode ver aumentado o seu número de mandatos. As coligações também favorecem, em geral, o aumento de mandatos face aos que obteriam os partidos em causa se não coligados. Este efeito favoreceu efectivamente a coligação PSD/CDS nas eleições de 2011 e 2015. O leitor encontrará exemplos do que expusemos se analisar os resultados eleitorais do MAI.
   
[2] Para dar um exemplo, sempre assim fez Lénine.
   
[3] Um exemplo do actual reformismo do PCP, tirado da declaração do Programa Eleitoral de 08/07/2015: “a eliminação de condicionamentos estratégicos pelo controlo público de sectores como a banca e a energia”. Condicionamentos estratégicos? É só isso? Nós pensávamos que era o domínio absoluto de sectores-chave da economia pelo grande capital transnacional. Se são só condicionamentos, então talvez baste um simples descondicionamento. Que tal uns regulamentozinhos? E a nacionalização da banca que o PCP já anteviu? Pelo menos, da comercial? Ou será esta medida demasiada para um simples condicionamento estratégico? E quais as tácticas a seguir com vista ao descondicionamento? É que até bons gestores capitalistas ao serviço do governo (logo, submetidos ao “controlo público”) podem jurar que vão eliminar os famosos condicionamentos. Que tal a táctica do controlo da banca por comissões de trabalhadores? Etc. São aos montes as propostas como esta do PCP que fogem, como propostas reformistas que são, a formulações claras, concretas, que os trabalhadores e o povo comum entendam. Cremos que muitos dos que leram aquela proposta não entenderam o que o PCP concretamente queria com ela.
   
Também não entendemos a proposta do PCP de construção de “novas marinas e mais lugares de amarração para embarcações de recreio”; será que é esta uma proposta/preocupação legítima de um partido comunista de um país no meio de uma aguda crise social, com mais de dois milhões de pobres e largas centenas de milhares de desempregados? Desconhecíamos esta preocupação do PCP pelos proprietários de “embarcações de recreio”.
   
[4] Por exemplo, no segundo governo de Pierre Mauroy (22-06-1981 a 22-03-1983) constituído por 43 ministérios, 4 eram do PCF e 2 do MRG.
   
[5] «Comunicado da Comissão Política do Comité Central do PCP Sobre a “Posição Conjunta do PS e PCP sobre solução política” Lisboa, 10-11-2015, aos órgãos de comunicação social.»
   
   
[7] M. Soares não se mostrou nada entusiasmado com o Acordo, dizendo a 20-Out que a situação política do país é "uma confusão efectiva".
   
[8] Barreto é a extrema-direita do PS. Logo disse que o Acordo era “fantasia alucinada” e que o governo de esquerda irá ”rebentar com toda a força” acrescentando patrioticamente “Prefiro mil vezes os credores aos comunistas”. Um pró-imperialista sólido.
   
[9] Demitiu-se do Secretariado Nacional do PS por discordar da linha política do partido no pós-eleições.
   

[10] Votou na direcção do PS contra o Acordo.